quarta-feira, 19 de julho de 2023

Cavalera: Morbid Devastation


Acabei de ouvir o “Bestial Devastation” e “Morbid Visions” regravados pelo Cavalera Conspiracy. A verdade é uma só: nada irá superar os originais. 

Ponto. 

Mas se vc tem em mente que se trata de uma releitura, cujo proposito não era ser igual, mas refazer usando a tecnologia de hoje, com a técnica individual atual dos irmãos Max e Iggor, você provavelmente vai concordar que o resultado ficou fantástico. É claro que aconteceram alguns (pouquíssimos) equívocos em termos de arranjos, mas, no geral, ficou sensacional.

Voltando um pouco no tempo, os irmãos Cavalera pegaram o mundo de surpresa ao anunciarem a regravação dos clássicos “Bestial Devastation” e “Morbid Visions”, lançados respectivamente em 1985 e 1986, quando o Sepultura ainda dava seus primeiros passos. Obviamente que todo mundo que gosta desses álbuns ficou curioso, inclusive pela divulgação também das capas dos álbuns, cujas artes originais foram “turbinadas”, deixando-as ainda mais ofensivas do que na época dos seus lançamentos. Não é novidade que Max e Iggor ultimamente têm revisitado o catálogo do Sepultura do período quando estavam na banda, mas a regravação desses álbuns foi além de tudo feito até então. Chega a ser curioso o fato de que o próprio Sepultura (atual) não resgata mais esse passado tão longínquo, se limitando a executar com mais frequência nos shows músicas do “Arise” para frente (creio que apenas “Troops of Doom” sobreviveu da fase antiga) numa escala bem pequena, uma vez que o catálogo da banda com Derrick nos vocais já é bem extenso.

Se por um lado o Sepultura não liga muito para esse passado, Max e Iggor o fazem com maestria. Curioso que já tínhamos uma banda nova fazendo justamente esse resgate, o The Troops of Doom, banda do ex-guitarrista Jairo Guedz, criada justamente com uma pegada desse Sepultura antigo, exatamente na fase agora coberta pelos irmãos Cavalera. Até então os olhos estavam voltados para eles, que além da clara influência, já haviam regravado algumas faixas desses mesmos discos. Não tardou para que fossem levantadas dúvidas do porquê Jairo não ter sido convidado para este “revival”, mas até então, nada foi dito em ambos os lados... 

Já escrevi aqui neste blog sobre esta mania de regravar material antigo que alguns artistas têm, e que nem sempre dá certo. Nem mesmo as precárias condições de gravação disponíveis na época servem de argumento, mesmo porque alguns albuns ficaram maravilhosos não só pelas músicas em si, mas por alguns detalhes nas gravações/ mixagens/masterizações toscas que os abrilhantaram. Mexer no que deu certo, ainda que para consertar estes “erros”, não justifica alterar algo reconhecidamente clássico. Entretanto, estamos falando de Brasil-anos 80, onde simplesmente não havia estrutura, estúdios e nem profissionais especializados em Metal, ainda mais extremo. Com o Sepultura foi exatamente assim, com o Morbid Visions gravado numa mesa de 16 canais em um estúdio em SP - proporcionalmente um luxo, se comparado aos míseros 8 canais (!) do Bestial Devastation no J.G. Estudios da Cogumelo. Nossa realidade era bem diferente das bandas gringas da época que, apesar de serem “mal gravadas” em alguns casos, dispunham de recursos muitos superiores aos nossos. Pensando nisso, cheguei à conclusão de que, se não fosse mexido o espírito desses álbuns nessas regravações (clássicos do Death Metal nacional), eles ficariam sensacionais com uma produção decente.

Com o lançamento dos discos dias atrás, ficou claro que os Cavalera parecem ter entendido exatamente o que deveriam fazer com este material. Obviamente há diferenças, mas a essência da música está ali, e de maneira brutal. Iggor conseguiu uma timbragem brilhante de bateria, deixando-a muito pesada e nítida (alguém lembra do som de “latinha” que a caixa tinha na versão original?), o que de cara engrandeceu as músicas. As guitarras também estão bem timbradas e replicam os riffs de maneira brilhante, principalmente nas partes rápidas, mantendo o peso avassalador das músicas em ambos os discos. Como o baixo sempre foi algo polêmico para a banda (quem não se lembra dos rumores de que Paulo não sabia tocar e ficava nervoso em estúdio, levando sempre alguém a assumir o instrumento) e nestes álbuns em específico não existia baixo nos originais, aqui ele é presente e muito bem-vindo. Agora, o grande destaque são os vocais, ainda que fossem minha maior preocupação desde o primeiro momento. É notório que Max ao vivo nos dias de hoje já não tem a mesma fúria nos guturais, bastando uma checada no YouTube para ver que, em algumas músicas, a sua voz limpa faz-se mais presente do que deveria. Mas aqui trata-se de estúdio, onde tudo é possível, embora ainda sim eu tivesse minhas ressalvas... Entretanto Max optou em não tentar copiar os urros que conseguia dar no passado, mas adaptou seu vocal grave com um certo eco que deu um molho especial às músicas. Além disso, Max hoje fala inglês fluentemente, o que permitiu que as letras fossem declamadas corretamente, sem o atropelo da versão de 1986. Para entender o que estou dizendo, basta pegar o encarte e acompanhar no original o Max dos anos 80 com seu inglês urrado direto da macarrônia. Vale ressaltar também que diversos trechos das letras foram alterados: em alguns casos, para correção dos erros de Inglês (que eram muitos nos originais), em outros para amenizar a temática Satanista barata e sem sentido usada na época, possivelmente por soar datada hoje em dia.

Em termos da música, confesso que não esperava mudança nos arranjos, embora isso fosse inevitável. Foram feitos alguns discretos ajustes estruturais, coisas muito sutis, mas que deram um upgrade necessário para a modernização do material. É claro que aqueles acostumados aos originais podem estranhar, mas creio que o tempo resolve este ponto. Vale ressaltar que, principalmente o Morbid Visions, em alguns momentos tem um acento Thrash evidenciado, mas nada que comprometa o resultado final. Basta lembrar que Troops of Doom foi regravada pelo próprio Sepultura quando do relançamento do Schizophrenia em CD e o resultado foi uma faixa muito mais Thrash do que Death Metal. Um ponto que me causou certa estranheza foi a inclusão de narrações/vozes declamadas no meio de algumas músicas (War e Warriors of Death são exemplos), o que não surtiu o efeito esperado, creio eu. Ainda no aspecto estrutural, a melhora dos solos salta aos olhos (e ouvidos), pois esse era um problema grave do Sepultura no início de carreira: solos ruins de doer. Esse quadro só mudou com a chegada de Andreas no “Schizophrenia” , mas antes do disso, só alavanca e muito, muito barulho gratuito. 

De um modo geral, o Bestial Devastation ganhou mais neste processo de regravação, uma vez que a produção original era muito ruim e a banda muito crua em termos de execução. Mas o Morbid também teve um upgrade significativo, ainda mantendo a aura sinistra do original e apresentando um álbum muito mais rico instrumentalmente. Em termos individuais, no Bestial Devastation temos a intro (“The Curse”) que foi refeita e aqui para aparece em Português, mas sem o efeito de voz original, o que pode decepcionar alguns fãs da primeira versão. Particulamente, achei que perdeu o impacto do original, mas vale apenas pela originalidade da idéia em mudar o idioma. Os destaques aqui vão para Necromancer e Warriors of Death (minha favorita desde sempre!). Ambas ficaram sensacionais !!!!! Só não me acostumei ainda com Antichrist, que tinha uma originalidade única naquela gravação tosca. Talvez com o tempo...

No Morbid Visions, como já disse antes, a regravação apenas exaltou o que já era bom e superava o EP de estréia. Entretanto, duas músicas simplesmente valem a aquisição, pois ficaram destruidoras: Crucifixion, que conseguiu ficar ainda mais tenebrosa e pesada (os sinos usados no meio da música ficaram fantásticos) e Funeral Rites, que tem sua intro numa versão ainda mais tétrica, assim como o encerramento, que também ficou avassalador. De modo geral, achei o disco equilibribado, e como já disse, com uma veia meio Thrash (discreta), inexistente à época. Empire of the Damned é onde isso fica mais evidente.  

O resultado final é um lançamento que preza pelo cuidado na produção, mantendo o espírito dos originais e trazendo uma parte visual muito impactante. Ainda que o resultado certamente não vá agradar a todos, com certeza vai fazer a alegria dos fãs mais fervorosos que viveram aquela época e sentem falta da banda que o Sepultura foi, numa era que se encerrou na saída de Max e anos depois, de Iggor.